Ainda durante o Open House no centro de transmissão de Ipanema semana passada, Si Fu ao falar sobre a insubstancialidade citou um exemplo do Si Baak Jucelito Wainer:
“Se eu tenho um carro, e tiro as 4 rodas ele ainda é um carro?”
“E se tirarmos o volante?”
“E se tiramos as portas?…”
A história segue, cada vez temos menos carro, porém ainda nos referimos às peças restantes como um veículo.
A conclusão é que as coisas não existem por si só. Nós é que atribuímos valor e damos substância a tudo - inclusive um diferencial de um bom praticante de Kung Fu (功夫) é a capacidade de ver além do óbvio.
Um ponto interessante é que a primeira vez que ouvi essa história foi a mais de 15 anos. Si Fu provocava uma sonolenta Jade enquanto a levava para o colégio. Eu ia no banco do carona ouvindo muitas vezes sem entender. O que me pergunto agora é se Si Fu estava de fato falando para ela, ou a usando para me contar;
Enfim, isso se tornou um hábito que trouxe para minha família: sempre que podemos estamos conversando sobre aleatoriedades, tudo é passível de questionamento e todo conhecimento é bem-vindo.
Disso temos mais algumas historietas relacionadas à destruição de carros:
Quando nos mudamos para Petrópolis as meninas descobriram uma nova brincadeira: Sempre que uma avistasse um fusca primeiro, ela indicaria “Fusca!” e daria uma catucada na outra.
Depois alguns excessos de ambas as partes eu aderi ao esporte (de forma “pedagógica") e após apenas algumas intervenções (“educativas”) elas tornaram a brincadeira mais civilizada: Ao ver um fusca elas simplesmente indicavam e somavam pontos de acordo com cores e outros critérios (muitas vezes duvidosos).
Isso se tornou nosso pequeno jogo para nos distrairmos em viagens mais longas, com o tempo fizemos variações para outros ambientes e se tornou um bom treino de atenção e de estar em guarda.
Numa viagem numa pequena cidade no interior do Rio a quantidade de fuscas era até grande, entretanto em sua maioria estavam fora das ruas principais, como eu estava dirigindo eu perdia para ambas por não poder vê-los.
Como a situação estava crítica avistei uma Kombi e falei: - “Fusca!”
Ambas se queixaram: - “Papai! Isso não é um fusca!”
Respondi com ar sabichão: - “Ué! A Kombi foi criada pelos alemães combinando o motor do Fusca com um veículo de carga - então tem um fusca ali dentro”. Elas reclamaram, mas me deram meio ponto de consolação.
Mais à frente vi uma carroça e falei novamente: “Fusca!”
Novos protestos vorazes. Comecei meu argumento com a história do Si Fu: - “Se eu tirar as rodas da frente do fusca, ele ainda é um fusca? se eu colocar um cavalo para puxar ele deixa de ser um fusca?” - Consegui mais meio ponto!
No fim, foi uma grande goleada delas, mas elas se divertiram bastante comigo tentando conseguir pontos com a lixeira na rua (se eu jogar um monte de lixo no fusca?), o cachorro que passava (se o fusca tivesse patas?), o pombo no poste (se o fusca voasse?)…
Certo dia ao caminhar com minha filha mais nova, estávamos em meio àqueles silêncios constrangedores numa rua deserta, a catuquei para quebrar o gelo e falei: - “Fusca!”
Ela contestou imediatamente: - “mas não tem nada aqui?!”
Eu expliquei: - “No final da idade média um filósofo chamado Hegel falou que tudo que existe é fruto dos sentidos, ele criou a Fenomenologia”
Ela me olhou ainda incrédula por receber uma catucada gratuitamente.
Continuei: - “Pensa bem. Ao olhar um fusca na rua a imagem se forma na sua mente. Da mesma forma, quando você imagina um fusca a imagem surge na sua cabeça. Qual diferença entre o fusca que existe do lado de fora e o fusca perfeito de dentro da sua mente?”
Ela virou os olhos, já sabia que eu não ia parar. Entrei numa outra explicação: - “Inclusive, o fusca ideal, segundo Platão…”
Simplesmente acabou o silêncio daquela caminhada, ela ria e retrucava os absurdos já sabendo que no caso de outro silêncio viria uma nova catucada (“pedagógica”). Foi um bom treino de guarda para ela.
Num trajeto longo, competíamos novamente por quem encontraria mais fuscas, a competição era séria: Os perdedores pagariam um belo sorvete para o vencedor.
Ao chegar no final do trajeto, a minha filha mais velha estava à frente por 2 ou 3 pontos.
Entramos na sorveteria e a mais nova falou: - “Sabe o que acontece? Imaginei um estacionamento cheio de fuscas, logo tenho 50 pontos a mais que vocês e ganhei”
A mais velha retrucou: - “verdade…, mas agora que você falou do estacionamento de fuscas, pensei na mesma coisa então empatamos - Papai paga o sorvete”
Sorri e respondi: “Perderam! Quero aquele sorvete mais caro ali!”
Elas me olharam reticentes sabendo que viria alguma manobra, continuei: “Meu estacionamento é só de fuscas azuis, tenho mais pontos que ambas”.
Apesar de eu ter “ganhado” paguei os sorvetes para conter a rebelião que se formava, só então elas aceitaram meus belos fuscas azuis estacionados.
Hoje muitas vezes falamos: “sabe o que pensei?” e já calculamos pontos e carros metafísicos (e sorvete!) automaticamente. Quando um silêncio se forma, uma catucada já nos remete aos fuscas imaginários e, não raro o silêncio permanece com elas esperando de onde vem o próximo golpe - A diversão está nesses jogos particulares que criamos.
E você? preparado para ver além do óbvio? Procure um dos centros de transmissão do Instituto Julio Camacho.
Fusca!
Sinta-se catucado!